Concordei. E o que mais eu poderia fazer? Levantei a mão e apontei àquela que estava exposta no meio da praça. “Apedrejem-na! Apedrejem-na!”. Aos poucos, quase sem voz, eu arriscava repeti-los. Mas a minha única vontade era pedir: “Parem! Parem! Do crime que ela cometeu, eu peco todos os dias.”
E agora? O que fazer de minha vida? Eu pequei. Fiz tudo errado. Eu merecera estar ao lado daquela moça e ser apedrejada por meus erros. O perdão parece-me apenas uma palavra sem significado, as pessoas não têm obrigação de dá-lo à mim. Embora, no momento, ninguém enxergue meus vendavais.
Onde irão parar as pegadas dos passos falsos que estamos dando? Olho para trás e não vejo nada... Mas em algum momento alguém perceberá a falta de rastro e irão me perseguir. Paranóia. Paranóia. Eu sei. Ninguém saberá o que matei e o que feri. É só a minha consciência... E terá pagamento maior do que viver com a cobrança de corrigir? Terá julgamento maior do que o da minha própria consciência? Não. Não há. Estou presa no remorso de mim mesma, e o que fazer?, não sei.
Quando o caos chegou, ninguém pôde me salvar de mim. Os muros que criei para esconder os meus pecados não podem segurar o que sou e o que me tornei. E o que me tornei? Estou presa dentro das paredes que construí. Não haverá algum livro que diz sobre as pontes que não fiz? Sim. Há. Sou sozinha. Somos apenas eu e a solidão.
A roupa suja, o café frio, o vaso quebrado e a casa vazia, são chamativos para andar pela cidade. Andar pela cidade faz-me encontrar as pessoas que julgariam minhas colunas eretas. “Sou cabisbaixa”, penso — “não precisam erguer os ombros para mim”. Sinto-me só no meio dessas pessoas e sufocada em minha solidão. Por onde ando? O que perdi? Onde está a minha alma? Eu já não me lembro se tive alguma...
De repente, a multidão. E lá está a mesma pecadora que eu. Os pecados diferentes, sim. Mas o mesmo destino. Os dedos mirando, as pedras, a fogueira, o fim... As correntes em seus braços davam-lhe a certeza de quem não escaparia. E os olhos aflitos pareciam pedir que alguém intercedesse por ela. Eu saberia sentir o que ela estava pensando: “ — Vocês também erram, por favor, dêem-me uma chance.”. Mas eles não dariam.
Apenas se, e só se, alguém atrevesse a intervir por ela. Era uma chance. Porém quem faria? Eu. Eu deveria. Eu gritaria não porque ela gritaria por mim em papéis invertidos, mas porque eu gritaria pelos meus pecados. Os muros que construi para me livrar das pedras não salvariam o meu teto de vidro. Eu teria de mudar aquela história.
Somente eu poderia me salvar. E ela era eu. Era eu, eu futuro. Eu quando minha boca perdesse a costura que fiz e os lábios gritassem que sou pecadora. Na história, foi Jesus, mas Cristo eles escutariam... Eu não. Não sou Ele, não sou Filha D’Ele. Pois quem sou eu para achar que a multidão não deveria julgá-la? Eu era o futuro.
E quem poderia deixar o futuro morrer? As mãos eram minhas e nelas estavam o que estava por vir. Precisara arregaçar as mangas e fazer algo por aquela errante e pela minha consciência. Mas o que fazer? Eles não irão me escutar... Os gritos deixam ensurdecidos os ouvidos dessas pessoas que a julgam. Preciso de algo que possam ver. — O que veriam?
Palavras, que calem os surdos e escutem os cegos. Eu escreveria palavras.
Voltei correndo sem me preocupar se os passos poderiam me trair. Quem sabe cair, quem sabe pular, quem sabe perder um olho. Dane-se. Eu coloquei toda a velocidade de minhas pernas em prática e atravessei meu muro, minha proteção, quebrei meus cadeados e lá estava o que eu queria: Um espelho e um batom vermelho.
Escrevi sobre o espelho. O batom lembrava-me sangue. E, assim, vermelho era minha cor preferida. Voltei a correr, agora, com rumo à grande praça. Os passos pareciam mais confiantes, poderia agora enxergar o menino brincando com carrinho de maneira na esquina e o velho com sua barraquinha de refrescos...
Cheguei. Passei pela multidão. Esbarra n’um, desculpa aqui, esbarra n’outro, desculpa lá. Parei frente a moça, sorri, virei as costas e avistei os que a julgavam. Alguns me analisavam curiosos, outros não se importavam comigo. Olhei todos, um a um, e subi sobre o banco onde sentavam os casais de namorados todas as quartas-feiras. Refleti o espelho sobre a multidão, que se enxergou num espelho onde estava escrito: “eu também errei”.
Vermelho de sangue, “eu também errei” e a face de cada um lá refletido. Vermelho de sangue, a mensagem perfeita, “eu também errei”. E a multidão se via presa, presa em seu próprio caos, em seus próprios murros. Alguns paravam e refletiam, outros só queriam continuar. Porque esse é o nosso mundo: já não importa o certo e errado, importa o que as pessoas querem. O que [algumas] pessoas desejam. E elas queriam morte. Queriam a moça apedrejada e queimada, e, agora, eu no mesmo fim. E assim se fez.
O mundo apedrejou meus erros, queimou meu corpo, e não libertou minha alma. Não há preço que se pague pelo que se faz. Queimaram os pecados e serão queimados por eles. Porque as almas que não querem paz, vão ao inferno com suas guerras. Então, não há muros ou proteção que guarde o mal da sua própria solidão. Ninguém poderá lhe salvar de si mesmo. Não há como fugir, como parar, nem como deixar. Depois daqui, a alma, existirá.
Dica de música: De Você - Pitty (Anacrônico)
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