Anota:
A vida é um presságio
Querido amigo,
peço-lhe desculpas por minha falta de
educação em minha última carta. Deveria ter sido mais atencioso com a sua vida.
Como vão as crianças? Acredito que se tornaram jovens lindos! Annabeth se
formou em Artes, não é? Ah, uma moça tão bela não poderia ter feito outra
coisa!
É intrigante montar os rostos de seus
filhos em minha mente. Caio, por exemplo, eu imagino que tenha o teu sorriso,
mas os olhos só poderiam ser verdes como os de Julietta. – Julietta ainda
cozinha tão bem como antes? – Lembro do sonho de sua amada de montar um
restaurante. Conheci a Itália recentemente e imagino que ela aprovaria o
tempero daquela terra romântica.
Em minha última correspondência eu
comentei que a minha fé havia passado por experiências fantásticas. Foi
justamente na Itália que tudo começou. Conheci um jovem casal que me fez
relembrar nosso tempo de juventude onde o único objetivo era viver para fazer
amor. O rapaz, chamado Rafael, era cheio de bravura e perspicácia. A moça,
chamada Antônia, era bela como a lua e doce como um morango.
Era bonito ver a maneira com que se
adoravam. Alias, depois que os conheci, passei a admirar a palavra
"bonito". Deve ter prestado atenção que já a usei pela segunda vez
desde que iniciamos nossas correspondências. É que a moça tinha tanta fé
naqueles olhos que aquela esperança me cativou. Ela explicara com a voz de quem
ensina que, "fazer bonito" era um ato próprio de quem amara.
Certa vez, Antônia me dissera que só
quem já amou, poderia ter fé. Ela costumara usar a palavra "fé" de
maneira cuidadosa. Acho que era porque quando ela falava de fé, ela também
queria falar sobre Deus. E mesmo que pareçam a mesma coisa, eu comecei a notar
que são duas palavras de significados diferentes.
Rafael sofrera de uma doença fatal. Os
médicos já haviam o alertado de que ele não reagiria aos tratamentos. Foi
justamente por isso que ele resolveu não contar nada a Antônia sobre sua
situação. Fico me perguntando se há como contar à quem nós amamos que nós
iremos morrer. Bem, se há um jeito de contar, Rafael não tivera descoberto.
Porém é impossível esconder algo que nos
atormenta de quem possui o nosso coração, não é mesmo? Namoravam há um ano e dois
meses quando Antônia descobriu que seu companheiro provavelmente não iria
acompanhá-la até o final de sua trajetória. Você pode imaginar a aflição que
aqueles lindos olhos de Antônia levaram ao ver os exames de Rafael. O fato é
que o rapaz, com sua culpa, fez a moça viver uma mentira.
Rafael e Antônia falavam línguas
totalmente diferentes, metaforicamente é claro. Mas não importara, não para
eles. O amor parecia bastar. Bastou para que Antônia o perdoasse e o ajudasse a
enfrentar sua enfermidade. O amor é a multiplicação do perdão, não é mesmo? Certa
vez, o poeta escreveu "diga-me quem mais perdoou nesta vida e eu lhe
direi quem tu mais amou". Antônia esqueceu sua dor para salvar a vida de
quem ela tanto amara. Preste atenção: ela não o curou da doença, ela salvou a
vida.
Salvar a vida de alguém é estender o
braço quando o caminho a seguir é árduo. É assim que amamos as pessoas:
salvando vidas. Foi salvando a nossa vida que Jesus Cristo nos deu amor. É
deixar o peso da existência e compreender a parte bonita de estarmos aqui. – Rafael teve que esquecer que sua
existência iria acabar mais cedo para se permitir viver a beleza de um grande
amor.
Pude acompanhar de perto a doença de meu
jovem amigo e o companheirismo de sua doce namorada. Quando Rafael se foi, Antônia
se mudou para o Brasil. No dia do velório, o corpo no caixão parecia sorrir.
Foi quando entendi que a felicidade só seria cumprida quando a vida estivesse
cumprida também.
Sabe, se não houvesse fé naqueles dois,
não teriam atravessado o caminho. É preciso muita coragem para levar adiante um
amor que não será como os outros. Não tiveram tempo de casar, ter filhos e possuir
casa. Nunca vi Rafael e Antônia se preocuparem se iriam terminar a faculdade, se conquistariam o emprego dos sonhos e se o dinheiro pagaria a prestação
do carro. O fato de entenderem que aqui é apenas um presságio foi o que os deu
força para não ter medo do que vem depois.
A vida é um presságio, amigo. Não há
tempo para esperas. É por isso que todo o amor do mundo deve ser dado hoje. Se
não viemos aqui para cumprir a tarefa de amar, por que parece que Rafael não
viveu o suficiente?
Espero que esteja lendo com pausas esta
carta. Quero que se apegue às seguintes palavras: fé, Deus, amor. Hoje eu sei
que embora significados diferentes, estão juntas. Só conhece a Deus quem já
amou. Quem não teve a capacidade de amar, não poderia ter fé e nem poderia
reconhecer quem o criou.
Eu venho percebendo que Deus não quer
que sigamos regras. Para Ele tanto faz se vamos guardar o domingo ou não, desde
que saibamos que Ele nos criou. O que importa se é chamado de Deus ou Alá? Os
trajes das moças ou os chapéus dos rapazes. O que importa? Não é isso que Ele
quer de nós. O que é preciso é ter fé.
É saber que há uma força, independente
de como você crê nela, que nos rege. É permitido ter a sua religião, como é
permitido não a ter. Repito: O que é preciso é ter fé. A fé que nos traz o
amor. O amor que é a meta de estarmos aqui.
Porque a fé significa esperança. Dela
poderemos construir coragem, mover montanhas, construir prédios, separar o mar
vermelho. E o amor é bonito. É com ele que nós dividimos a vida e é com amor
que poderemos nos salvar.
Bom, acho que eu já escrevi demais hoje.
Queria novamente demonstrar a saudade que tenho de poder conversar com você,
meu amigo. Frente a frente seria mais fácil você entender a minha fé. Desejo
uma boa semana e boas histórias.
Com esperança,
Chico.
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