Respeite o tempo. Talvez eu tenha mudado de opinião.

quarta-feira, novembro 30, 2011

G.


❝Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto – uivaram os lobos e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.❞

— Trecho do conto Os desastres de Sofia, Felicidade Clandestina, Clarice Lispector

O RELÓGIO DIGITAL APITA 01:24 a.m. E O CADERNO DIZ: ESQUECE, ME ESCREVE.

E, no travesseiro, saem as dúvidas que percorrem a cabeça...


A palavra refletir leva o significado de “v.t.d. Fazer retroceder; repercutir; espelhar; v.t.i. transmitir; raciocinar” em meu Dicionário. Dicionário talvez tenha se tornado o meu melhor amigo. Ele leva os significados e os segredos das palavras... Se você procurar amor, por exemplo, ele trará “s.m. Afeto a pessoas ou coisas”. – E há algo mais sábio que isso? – O amor é o afeto que se tem àquela fotografia ou àquelas pessoas daquela fotografia...
O Dicionário contém um mundo dentro dele que, me causa alguma inveja (inveja: s.f. pesar pelo bem alheio, sentimento de cobiça).
Você, por acaso, já pensou se nós seguíssemos a risca um dicionário? As palavras ditas com verdade, – diretas, certeiras e sem enganos. Já pensou quantas lágrimas de moças seriam poupadas se os rapazes soubessem que cavalheiro, ainda consta em nossos dicionários, são pessoas de sentimentos elevados e educação esmerada; e não têm nada a ver com cafajeste (s.m. homem de ínfima condição). – E se as pessoas diferenciassem sexo (s.m. Diferença constituída entre macho e fêmea; órgãos genitais) e amor? – Sexo não é nada poético, amor não é qualquer coisa. Deveria ser lei: Amor você poderá fazer sem sexo, mas sexo sem amor não é permitido. – Já pensou? Conhecer a intimidade de alguém que você não sabe se gosta de sorvete de morango ou chocolate? O que contar para a pessoa que, você mal conhece, após o sexo? Eu imagino: “E aí, gostou do meu desempenho por cima? Eu chamo de Ataque à Torre de Babel...”. Que graça tem se amanhã eu não irei lembrar? Não. Sexo sem amor não é legal. [...]
Mas você já parou para pensar em amor sem sexo? Eu me lembro de meu primeiro namorado, que eu não sabia o que era, mas dizia amá-lo... Já pensou em como as coisas acabam? Acaba escola, acaba relacionamento, acaba amizade, acaba filme, acaba novela, acaba chuva, acaba linha, acaba tinta de caneta, acaba tempo... Como o fim pode ser definitivo ou temporário? Ainda posso reencontrar meu primeiro namorado...
Já parou para pensar por que eu escrevo? Eu já. – Não sei. São mais de uma da manhã e minha mente não dorme. Já parou para pensar por que disseram aquilo? Por que aconteceu daquela maneira? – Quantas portas você já fechou? Figuradamente? Literalmente? – Quanto é a metade de? Inteiro do? Um? Dois? Três? Ele? Quando? Ela? Será? Não... Sim... Talvez.
Já parou para pensar por que o tempo não volta? Por que você perdeu aquilo? Como ganhou isto? De onde veio aquela pessoa? Por que você? Justo com você? Por que não do jeito que você sonhou? Sonhar: v. intr. Associação incoerente de ideias que se formam durante o sono; entregar-se a fantasia e devaneios; v.t.d. imaginar;.
Eu ainda tenho a alma de criança que sonha. Espero preservar isto. Não quero morrer só, estressada, de infarto ou falta de tempo. Eu quero sonhar como voa a pipa, como fala o padre, como manda o conto, como apita o apito, como soa o assovio, como canta a voz, como se escuta a música... Eu quero sonhar.
Eu convido você a refletir: O que você quer? Quando acaba? Vai passar? Haverá outra chance? Qual a diferença entre? Por que eu não posso fazer da minha vida um pequeno dicionário? – Carregar mundos. Entregar os significados do bem e do mal. Ser o melhor amigo de alguém. – O motivo de algo. – Uma busca, uma pesquisa, um encontro.

EU SINTO FALTA DA TUA SOLIDÃO


Era alguma das opções: eu sentira a tua falta ou tentara senti-la, numa tentativa vã de rejeitar as voltas que minha vida queria dar... Quanto tu voltaste, eu não haveria de ter lhe esquecido, mas já não saberia mais o que sentira por ti. Dane-se! Joguei tudo para o alto e lhe abri os braços na esperança de voltar a viver minha velha vida. E assim perdi o rumo outra vez. O que foi não volta, se voltar – volta em dobro. E, na tua ausência, eu descobri que não estava preparada para o dobro da história. Eu almejara futuros e fizera planos, mas não soubera quem eu era. Eu precisei descobrir quem está dentro de mim para saber o que iria me fazer feliz. – Eu não sinto a tua falta, eu sinto a falta da tua solidão. – Quando foste embora, a minha vida tornou-se perfeita. As pessoas olhavam e ficavam felizes porque o homem mais perfeito estava apaixonado por mim. Mas eu não estava feliz por mim mesma. Eu era acostumada com a vida de amar o cara errado, e, de repente, o cara certo chegou e obrigou que eu o amasse. Demorou a cair a ficha e notar que o jogo tomou um fim. Mas, hoje, eu já sei: – eu ainda lhe amo, as coisas não mudaram entre nós. E é justamente o ponto: quem eu sou, gostaria que elas tivessem mudado.
Eu sinto a falta da tua solidão, porque é doloroso viver ao lado do cara certo que possui um sorriso lindo no rosto durante as vinte e quatro horas do dia. Há dias em que estou pela metade e eu preciso de alguém que partilhe algum silêncio comigo. E há dias em que as pessoas estão quebradas ao meio e eu preciso ficar só. Quando tudo é confusão eu preciso da esperança que eu possa criar em meu próprio coração. Não sou o tipo que gosta de esperanças já feitas, acabadas, e palavras de consolo. Por palavras, já tenho as minhas. Eu preciso de alguém que viva os meus tormentos, e, ao mesmo tempo, alguém que segure a minha mão.
Quando fui internada, eu fechara os olhos e pensara na saudade que havia ficado em meu peito. E, quando abrira os olhos, eu enxergava ele dizendo que sempre estaria ao meu lado. Tu nunca estivera ao meu lado nos momentos difíceis e, eu sei que, eu nunca estivera ao seu em seus momentos. Tu não sabes um terço dos acontecimentos da minha vida... E, não importa o quanto o meu coração palpite por ti, tu nunca farás parte da minha história. Tu és uma fantasia, um caso, algo que nunca se realizou. Um amor sem pontos certos e sem testemunhas. És o meu pivô de relacionamento e nunca será mais nada além disso.
Tu – meu amado – sabe viver os meus espaços e tormentos. Enquanto – ele – segura a minha mão. Ele, é o cara certo. Tu, o cara que não foi feito para mim. E eu preciso dos dois, por enquanto.

sexta-feira, novembro 25, 2011

G.


❝É olhando para dentro que respondemos aquela pergunta do comercial de tevê. Então, o que faz você feliz? Responda esta simplória questão e aí sim, ganhe um passaporte para amar. Amar direito.❞

— Gabito Nunes

HÁ CANSAÇO. HÁ AMOR?

Quando o verbo "querer" anula o dever, ter e poder.


Eu precisara correr daquilo que houvera cansado meus pulmões. Mas como deixar ir aquilo que, embora não devesse, fizera parte de mim? Enchia-me de perguntas e inventara maneiras para me esconder do pecado. Enquanto andara com passos longos e ligeiros naquele lugar desconhecido. Olhara as árvores da floresta, mas meus olhos não captavam bem a sua paz. Eu estava cheia de infernos por dentro e não pudera ver a calmaria que vem de fora. Procurara saídas e não enxergara as coisas óbvias: – Eu teria que deixá-lo.
O “ter” e o “dever” são os verbos assassinos. Enquanto o “querer” é o verbo que nos faz ir. – Devo, tenho de, mas não quero. – E o verbo “poder” é aquele que nos mostra a capacidade dos três verbos. – Eu tenho de, eu devo que, eu posso deixá-lo ir, mas eu não quero.
Amá-lo foi a minha benfeitoria. Foi a minha jogada de cartas sem engano. Eu soubera o que eu estaria prestes a fazer e, mesmo assim, doei meu coração a ele. Eu só não soubera que ele, que me fez perder o juízo, conseguiria fazer com que eu perdesse o meu coração também.
Eu odiara a maneira com que deixara de responder minhas cartas, como saía com os amigos e esquecera-se de me ligar, como chegara tarde e como pedira desculpas. Eu odiara a vida que, dia após dia, eu teria feito com ele. Porque fui fraca, porque deixei ir, porque para mim eu deveria esquecer os jogos de conquistas e ser entregue como sempre fui. Achei que a pessoa verdadeira iria gostar de mim da maneira que eu era e ignorei as vezes em que o figurino me mandaria dizer “não, não posso, não vá, não desculpo”.
E talvez, talvez, talvez fosse mesmo assim que as coisas funcionam: As pessoas só amam quando têm medo de perder. E ele nunca tivera medo de que eu fosse embora. Porque eu deixara claro que ficaria. Eu nunca demonstrara minhas dúvidas e fraquezas quando se passava em minha cabeça a vontade de ir. Eu mentira sobre os meus caminhos e certezas, depois culpava-me pelo que não fiz.
Mas cedo ou tarde eu teria de tomar uma decisão. Porque de uma coisa eu sempre soubera, eu não ficaria ali para sempre. Eu arrumara as minhas malas e saíra para caminhar na floresta perto de casa. Refletir o que viria depois de fazer o que teria de ser feito. Pensei em comprar sapatos novos, conhecer novos homens, nada de casos antigos e ex-namorados, eu abandonaria ele e todo o passado. Eu queria recomeçar a vida como se ela nunca tivesse sido vivida. Era apagar um passado que não se apagara. O “se pudesse” prevalecendo antes do queima memórias e o “seja o que Deus quiser” pronunciado com cansaço.
O que era estranho é que eu andara mais carinhosa com ele desde que me convencera do que deveria fazer. – Como poderia? – Dei-lhe certezas do meu amor, mas irei abandoná-lo. – Ah! Nós mulheres demasiadamente confusas que encontramos meninos vestidos em corpos de homens e perdemos a razão... Ah! Nós mulheres loucas, sem nenhuma razão, que queremos viver... Ah! Nós mulheres que sentimos tanto que já não sabemos mais o que sentimos... Ah! Que pena que me dá ao ver os homens que se metem com a gente.
Porém, pena dele, me faltara. Eu tivera tristeza por todos os planos que fiz nunca tiverem sido e nunca serão. Eu tivera tristeza porque sei o quanto ele precisará de mim e eu não estarei por perto. Eu tivera tristeza porque ele me achará uma mentirosa e, não saberá, que a culpa é dele. Eu tivera tristeza porque ele sentirá culpa por seus erros errados, e não pelos erros que me motivaram ir em frente. Eu tivera tristeza porque o abandonaria sem muitas explicações e nunca mais pronunciaria seu nome, nem escreveria cartas, nem perguntaria dele para alguém.
Eu tivera tristeza porque soubera a vida que ele levara e queria que ele fosse feliz. Eu tivera tristeza, porque não me sinto mais triste ao deixá-lo. – Pasmem! – Depois de milhares de palavras escritas para ele e por ele, eu o deixaria sem sentir dor alguma. – Então o que lhe incomoda tanto? – O que me incomoda é o vazio que fica.
Pois eu já havia de ter sido tão cheia! Já fui tão irradiante de amor, já vi o passarinho verde, já abracei a árvore e dei Bom Dia ao motorista do ônibus. Já fui tão satisfeita com a noite anterior, já dei presentes por puro prazer e sem datas comemorativas, já rezei por, fiz por, deixei de por, e sorri verdadeiramente por aquilo. Já amei.
Mas eu não queria mais amar alguém cheio de defeitos. Alguém que nunca passaria daquilo em minha vida. Porque ele era apenas alguém especial e nada mais. Havia distâncias entre nós provocadas por nossos egos. E eu não soubera como, e tivera certeza de que ele não queria acabar com aquilo que nos separara. – Então, ele seria sempre aquele amor quase platônico. Ele não poderia dar o amor que eu merecera. E não passaria daquilo em minha vida. – "Então, se é só isso, se seria somente isso, para quê prolongar essa história? Já deu o que tinha que dar...", repetira sem parar em minha cabeça.
Eu teria de. Eu deveria que. Eu o deixaria para que eu pudesse encontrar o amor que me faria realmente feliz. O novo amor que eu amaria sem medidas e ele me amaria da mesma maneira; que eu confiaria nos passos dele e ele teria fé nos meus; que eu acordaria ao lado dele, passaria o domingo inteiro mimando-lhe, e no final do dia sentiria saudade minutos antes de deixá-lo voltar para casa. Eu iria depender daquele novo amor para minha sobrevivência, embora pudesse sobreviver sem. E o novo amor iria viver ao meu lado, cansado de apenas sobreviver... Iríamos ser aquilo que se chama “dois em um”.
Quando decidida, voltei para casa, e ao abrir a porta, havia uma carta no chão. Remetente? Ele. O conteúdo: “Eu odiei o filme que você me indicou. E odeio quando você indica esses filmes... Mas tudo bem. As qualidades nos atraem, mas são os defeitos que fazem com que possamos amar. Afinal, nós só amamos quem possui os mesmos defeitos que nós. – E eu sempre indico filmes que você odeia... Enfim, te amo.”.
Como ele faz isso?, pensei. – Eu amo um idiota que sempre quer ir embora, e eu sempre quero ir também. Eu amo um idiota que adora solidão, e eu adoro estar sozinha para desenhar minhas palavras. Eu amo um idiota que adora outras mulheres, e eu adoro outros homens. Eu amo um idiota que vive longe de mim e eu tento viver longe o máximo que posso. Eu amo um idiota que possui os mesmos defeitos que eu. – Embora eu tenha alguns mais e ele também, no fundo, são as mesmas falhas.
E como nós poderíamos amar quem não erra como erramos? E como nós poderíamos deixar aquele cheio de erva doce que nos dá alergia no nariz e nos faz suspirar saudades quando não tem? E como eu podería não amar aquele ser tão irritante quanto comercial de televisão? Como deixá-lo ir, se eu tenho certeza que, a vida o colocará no meu caminho outra vez? Como me afastar mais? Por que tantas perguntas? Por que ainda estou parada em pé com a porta aberta? – Ah, droga. Eu quero outro tipo de amor.

sexta-feira, novembro 11, 2011

G.


❝Queria perguntar em voz alta, mas a voz não saía, por mais esforços que fizesse, por mais que seus braços furassem o vazio e seu corpo amarrotasse as cobertas sem encontrar posição. Febre, tenho febre, pensou. E as palavras eram algo sólido, uma certeza onde poderia segurar-se. Tenho febre, repetiu sem voz. Passou novamente a mão pela testa, sentiu-a estranha. Quente, seca, fria, úmida. Havia inúmeras gotinhas sobre ela, gotinhas minúsculas que sua mão ia destruindo aos poucos. Levou a ponta dos dedos até os lábios. Sentiu um gosto salgado. De suor, lágrima, medo. Levantou o corpo na cama— não, medo não. Sacudiu a cabeça, as gotas rolavam pelo rosto sem que ele soubesse se seriam de suor ou de lágrimas. Das faces desciam pelo pescoço, molhavam o peito, o ventre, as coxas, os pés, escorregavam para dentro e fora dele. Estavam nele, junto com ele— eram ele próprio. O medo. Medo não medo não medo não, resistiu. Pois se sentisse medo, pensou vagamente, não poderia contar sequer consigo próprio. E eu só tenho a mim, eu só tenho a mim, repetiu, voltando a cair sobre a cama. Não posso sentir medo, não devo sentir medo, não quero sentir medo.❞

— Limite Branco, Caio Fernando Abreu, 1967

BALÃO DE AR

Tocara o instrumento sem parar, como se a música fosse-lhe uma obrigação. E talvez era. Talvez fosse. Teria que tocar por ela mesma, para ela mesma, com ela mesma. Como alguém que faz um trato consigo e promete que nunca irá desistir. – Ela tocara e a música levara a sua dor. – Eu poderia escutar seus olhos que desapareciam em lágrimas, cantando: “Leva ele de mim, leva ele de mim, leva ele de mim...”.


A minha sorte foi que eu nunca soube tratá-la como uma amiga. Tratei-a como se trata um cachorro: dei carinho, comida, água, mas mantive-me longe a ponto de mostrar-lhe o seu lugar. Eu não queria que ela soubesse quem fui. Saber o que eu me tornaria é um mistério até para mim, mas saber o que eu fui era, senão, um castigo. Ensaiei várias vezes: “Eu fui alguém que lhe faria sofrer, menina.”. Mas deixei que o silêncio falasse por mim. E o silêncio sempre fala da maneira errada, porque pelo não, todos interpretam o “não dizer” como querem. – Droga. – Mania errada de fazer as coisas, em vez de deixar claro o que sinto, deixo vago. E me arrependo.
Mas, a menina, vestira suas meias coloridas, amarrara os cabelos e pegara o ônibus até a escola todos os dias. Seus doze anos eram nítidos na maneira desengonçada de andar. Mas o olhar fixo revelara a grande mulher que se tornaria um dia. – É uma loucura, pensei todas as vezes que fui buscá-la na escola. – Eu, totalmente desregrada e sem nenhum objetivo, cuidar de uma menininha chata. Como poderia? Eu nem gostara do nome que os pais haviam escolhido à ela.
No dia do velório, diante do caixão, fazendo toda a cerimônia que os familiares deveriam fazer aos falecidos. Só consegui fazer uma coisa pela menina: dei-lhe um lenço, sem perceber que, assim como eu, a menina não chorara. Quando o notei, percebi que tínhamos mais em comum do que imaginara. Ela era tão forte quanto eu. Daquelas meninas que batiam o pé e as portas, para obrigar que atendessem seus pedidos, mas que – ao contrariada – seguira em frente sem molhar um centímetro sequer do pequeno rosto de boneca.
Tocara piano, costumara ler bons livros, não tinha muitos amigos e adorara arte. Certa vez me pediu emprestado um livro sobre Arte Moderna. Quando questionei-a o motivo, ela respondeu-me que adorara o quadro de Tarsila do Amaral que eu tinha exposto em minha sala. [...] Ora menininha travessa! Que tinha muito o que crescer, mas que eu sempre vira coragem em seus olhos. Via nela um futuro tão belo e que ninguém mais veria. Via nela a esperança que me faltara e o amor que sempre sonhei partilhar. Ela era doce até bebendo um copo d’água.
A vi crescer e cuidei dela como minha mãe teria cuidado. Perdi meu pai aos seis anos, aos oito minha mãe casou-se com o pai da pequena menina, e aos doze dela, a pequena menina, perdeu os dois. Eu, – afastada de minha mãe, criada pela avó paterna que não aceitara o novo casamento da viúva, e com grande ressentimento por minha mãe sempre deixar transparecer que eu era mais bem cuidada pela avó do que por ela. Como se não ligasse, embora me amasse. – Nunca senti nada de ruim perante a menina. Só preferira que fosse cuidada pela avó também, mas a avó dela era doente, coitada. – Então, não havendo mais quem, a guarda passou-se para a irmã mais velha que, quase abandonou a menina no orfanato. Mas decidiu conter os vícios e não deixar que a menina se tornasse quem eu fui.
Afastar-me dela era dar a chance de que ela copiasse minha história. Então, resolvi vigiá-la, cuidá-la, protegê-la, como se ela fosse um balão de festa que eu não poderia deixar estourar. Eu era aquela criança bobinha, aprendendo aos poucos, que balões de ar são frágeis.
Mas a fragilidade da menina mostrou-me minha fúria na decepção com seu primeiro amor. Aos dezesseis, com um menino mais velho, que tive vontade de arrancar-lhe as orelhas. – Como ele teria feito aquilo com minha menininha chata? – Eu deveria tê-la protegido mais. Mas com essa minha história de pequena solitária, liberalista, e compreensiva; deixei que ferissem minha pobre menininha. – Mas não me mantive calada.
Sim. Eu fui até a casa do menino e dei-lhe a surra que tanto mereceu. Lembrei-me do meu primeiro amor, quando quebrei um guarda-sol em sua cabeça porque ele olhara outra na praia. Mas eu tinha em mãos um pedaço de madeira mais pesado que um guarda-sol e tinha apenas que fazê-lo sofrer, sem matá-lo. Não que, também, tivesse matado meu ex-namorado; quer dizer, matei-o sim. Óh! Matei-o várias vezes só que de amor. Até que ele descobriu que sua vida não era ali e foi-se embora para outro país, deixando-me só com um guarda-sol guardado atrás da porta do quarto, e as fotografias de lembrança... Enfim, dei-lhe a sura, e fui embora boa e bonita.
Ao chegar em casa, percebida do estrago que poderia ter feito à vida da menina, preparei meus pedidos de desculpas e explicações de quase-mãe arrependida que amara um filho. Quando, pega de surpresa, descobri que a amara. E escutei o som do piano vindo do quarto. Ela cantara a música que papai havia composto para mim. Meu pai, pianista, que ensinou-me tocar e colocou-me na escola de ballet. O único homem que realmente fazia-me falta. – Perguntei-lhe onde ela ouvira aquela música e ela dissera: “Faz alguns dias que roubei das suas coisas.”. – Ah! Enchi-me de raiva por alguns segundos, depois lembrei que amara aquela menininha maluca e perdoei-a num instante.
Porque, quando amamos, o perdão é instantâneo. As falhas são muitas, o medo de perder é grande, aceitamos mentiras, e, ainda cuidamos dos nossos balões de ar. [...]
E assim soltei minhas primeiras lágrimas de amor. Escutando o piano, sonhando esperança na música e pedindo para que ela ficasse ali. – Fica, menina, fica; porque na minha vida, tudo se vai...

sexta-feira, novembro 04, 2011

E.


❝E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se nunca tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos mirando muito além das estrelas.❞

— O amor por entre o verde em Para Viver um Grande Amor, Vinicius de Moraes

CARTA À CAIO

– Você nunca teve vontade de fazer as coisas de maneira certa?
– Tive. Tenho, na verdade.
– Então... por que não faz?


São Jorge Portenlle, 29 de Abril de 2009.

"Querido Caio,
em resposta às perguntas de sua carta. Tenho esta única opinião: "sejas feliz".

Olha, rapaz. Não se preocupe comigo. Eu aprendi a viver sem você. Na verdade, – eu sempre soube. – Tu foste sempre ausente. – Eu nunca lhe tive em minha vida. E não levo como um drama saber que tens um outro amor... Nunca foste meu. Eu sempre tive que lhe dividir com algo: várias mulheres, amigos, vícios, ex-namorada. – Quando tu foste embora, eu senti a mesma falta que sentia enquanto estavas aqui.
Não sinto ciúmes do seu novo amor. E, por favor, não tente mentir. Eu conheço as falhas da tua voz, os olhos perdidos em segundos, a mão que ausenta o contato... conheço os sinais das tuas mentiras. Sei que estás com ela. – E apenas me preocupo...
Rapaz, se tu gostas dela... Agarra! Proteja ela, escute ela, cuide dela. Peça-a em namoro, leve-a para jantar, andem de mãos dadas. Trate-a bem. Tu não vês o quanto perdes ao se privar disso? Amar de verdade faz bem! Tratar bem quem nós gostamos, pode ser difícil, mas nos traz grandes recompensas.
Tu não sentes falta de mensagens de Bom Dia ao acordar? De chegar em casa e ter comidinha pronta? Da ajuda para lavar roupa? Da falta do chá da mãe que é suprida pelos cuidados da namorada enquanto estás doente? – Não sentes falta de um convívio não doloroso e sem complicações? – Não tens vontade de amar sem medidas e ter aquela felicidade simples, e, ao mesmo tempo, tão bonita?
[...]
Pare com essa mania de se esconder da vida, de querer fazer tudo errado, de fazer de conta... – Escuta a voz dessa menina. – Abre os braços para uma vida nova e doce. Faz certo, dessa vez, – não faça ela passar o que eu passei.
Não minta, não fuja, não confunda; não seja covarde. Não faça mal à ela. Não seja injusto com quem canta à você. Não brinque, rapaz.
Não brinque, pois a vida não poderá lhe pagar com a mesma moeda. Acredito que, ao partirmos um coração, a vida trata de nos deixar desempregados. Sabe? A gente entra em depressão com nossa própria vida. Perde emprego, amigos; bebemos mais; largamos faculdades... – Ficamos mal, sem saber porque a vida nos castiga. – Porque só ficaremos bem quando tratarmos [todos] bem, até os que não respondem às nossas gentilezas. – São os espelhos da vida, rapaz. Cuidado!
Ter cuidado é tudo que eu tenho feito. Abro olhos, dou-me novas chances, fecho janelas. Eu tomo cuidado. Eu miro a flecha naquilo que me faz bem e escuto as palavras certas. Eu tenho pouco tempo... Não poderei errar outra vez.
Não sejas tolo, rapaz. É impossível ser feliz sozinho. Trate-a bem. – Alcança o telefone, disca o número, liga para o teu novo amor. Chame-a para sair. – Comece uma nova vida, mas, dessa vez, que seja verdadeiro.

Que seja verdadeiro,
repito todas as noites antes de dormir.

Que seja verdadeiro,
Que seja verdadeiro,
Que seja verdadeiro.

Meu Deus!
Que seja verdadeiro, por favor!

Com amor,
Alguém Que Não Lhe Quer Mais.".

quinta-feira, novembro 03, 2011

G.


❝Bolha de sabão estourou-se na partição da ópera. Fragilmente dissipou-se no ar. Transpareceu como lentes convergentes. Imagem bela. Cores do arco-íris. Singela no caos. O teatro lotado. A criança reparando bem no palco. A bolhinha morreu. Oxigênio, gás carbônico, vapor de água e restos de bolha. A atmosfera sofre mais uma perda. Ninguém ao menos reparou. Em exceção à criança. Parada, desejando talvez que as moléculas de sabão se recompusessem e formasse nova. Agora estava em tédio. Toda aquela gente com roupa de gala, ouvindo música que não dizia nada. E com a bolhinha, muito mais importante, ninguém se importou. De tão pequenina, não chamava lá muita atenção… por isso o menininho gostava. Era dele, o que ninguém reparava.❞

— S. Andrade

À AMIGA

– O que você procura em alguém?
– Odeio homens medrosos.
– Mas o que procura?
– Odeio homens medrosos, embora sempre me apaixone por um. O medo me tira do sério e deve ser isso: Eu estou procurando infernos dentro das pessoas.


Todas as vezes que explico às pessoas o que se passa e o que se deve fazer com as decepções, dentro de mim nasce um arrependimento de quem mente. Como é que nós sempre nos propomos a aconselhar às pessoas quando, dentro de nós, falta-nos paz e está tudo errado? É que de fora tudo parece mais fácil. O segredo talvez seja não se envolver. Mas quem não se envolve também não sente. Sabe? Eu acho que, tudo, exatamente tudo, que você irá fazer, irá lhe causar algumas dores, mas deixar de fazer causa alguns vazios. [...]
Só é verdadeiro aquilo que é simples. O complicado é uma mentira que nós queremos acreditar. É claro que, eu já disse que, tudo irá nos trazer sofrimento, mas o verdadeiro simplifica muitas coisas como: Ele não te ligou, não porque a avó estava doente, mas porque não quis. Ele foi embora não porque lhe ama demais e precisa lhe deixar livre, mas porque preferiu seguir a vida dele sem você. Ele não lhe traiu pensando que você não se importaria, ele simplesmente não pensou em você.
Quem ama corre atrás, quem deseja inventa desculpas. Quem ama vai fazer tudo para não lhe ver chorar, para escutar suas dores, para pedir que você fique; quem deseja vai ir embora sem chorar, vai formar suas dores, vai pedir para que você o entenda.
As pessoas mudam, a vida toma rumos diferentes e tudo tem seu tempo. Cada acontecimento na sua vida aconteceu por um motivo. Sei que hora ou outra ele se vai e você o esquece, vira passado. Mas você não pode fechar os olhos e passar a mão na cabeça de tudo que ele faz, você precisa aprender a diferença: – existem apenas duas coisas no mundo, uma delas é o amor, e a outra é o resto. Com qual você fica? – Quer ser amor ou quer ser resto?
Não se acha pessoas especiais em qualquer esquina. Eu sei disso. Mas você já pensou em quantas esquinas você ainda vai passar? E quantas pessoas especiais você está deixando de ver? Pois quem deve ver a pessoa especial que ele abandona nessa esquina é ele! É ele quem perde. – Você não vê o quanto és linda?
A lógica da vida é seguir em frente. Eu sei o quanto o amor é lindo, mas é lindo com quem ama você. Não deixe que qualquer pessoa tire seu sorriso do rosto. Porque é preciso estar sorrindo para encontrar alguém que se apaixone pelo seu sorriso. – Lembre-se: Só é verdadeiro aquilo que é simples.

* * *
❝Se você se afastou de alguém, e esse alguém não correu atrás. Fique tranquilo. Você fez a escolha certa.❞ [C.F.A.]

terça-feira, novembro 01, 2011

E.


❝Venho por meio desta, te pedir que não voltes. Não espere que o meu amor te escancare um sorriso da próxima vez que bateres à minha porta. Esqueça o nosso plano de fuga deste mundo tristonho, as nossas tardes naquela cachoeira com margaridas por todos os lados, as nossas pinturas em tela aos domingos. Esqueça que um dia eu disse que seria tua por esta vida e quantas mais estivessem por vim. Abandona a ideia de deitar-te comigo debaixo daquele cobertor que já carrega o nosso cheiro e a nossa história. Se quiseres, esqueça até a ferida que abriste em meu peito ao partires deixando apenas um bilhete informando-me que um dia voltará. Esqueça-me, rapaz. Esqueça tudo. Só te lembra de nunca mais voltar.❞

— L. Novaes

THE WOLF AND THE OWL

O velho tinha barba grisalha e olhos negros. A pele era desgastada pelo sol e castigada pelos anos. Mas seus trajes brancos eram tão límpidos quanto às roupas do chefe bancário. Ele me olhara. Com seus olhos atentos e sábios, o velho me olhara. Me deixara envergonhada, com medo, e sem reação. Pois do mesmo modo que me olhara curioso; dentro de mim, levantavam-se curiosidades sobre as rugas de seu rosto. – Qual é a sua história, velho Cappela?



Cappela, era um homem que levara nas costas seus setenta e dois anos de idade. 72, sempre me foi um número de sorte. Depois de questionar-me, muitas vezes, por que Cappela só apareceu em minha vida neste momento, cheguei a conclusão que, aos setenta e dois de sorte era o momento em que Cappela deveria me encontrar.
Suas crenças sobre fé em Deus faziam-me duvidar das minhas crenças sobre a vida. Muitas vezes, tive medo de não poder comandar minha vida, então vieram as palavras de Cappela:
– A vida é sua. Deus a deu para ti e tu tem a chance de vivê-la. As escolhas são tuas, tudo que entra e sai desta vida é por sua conta. Deus não poderá intervir em muitas coisas. Ele poderá lhe confortar, proteger e iluminar. Mas as decisões e ações serão sempre tuas. O acerto com ele é no final desta.
Assim eu perdera o medo de que os meus sonhos não se realizassem e comecei a pedir forças, para que Deus não me abandonasse, e, principalmente, não deixasse que eu O abandonasse.
A primeira vez que Cappela dirigiu a palavra à meus ouvidos, fez-me duvidar da lucidez que eu havia lido em seus olhos. Só após um tempo foi que eu entendi que, Cappela se comunica assim com quem ele pode enxergar luz dentro da alma. Sempre me achei pequena, e todas as vezes que ele tentara mostrar-me a alma, eu achei que fosse mentira. E achei que fosse louco.
– Há uma grande dor aí dentro.
”Há uma grande dor aí dentro”, ele repetira em todos os finais de nossas primeiras conversas. Eu sentira como se aquele velho soubesse de algo, e percebera o quanto queria me despertar enigmas. Era como se em cada palavra ele escondesse um: “vai, descobre, corre atrás.”.
Como deveria ser, o tempo passou. E, aos poucos, cada pergunta ganhou resposta. Cada palavra do velho Cappela ganhou compreensão dentro de mim. E eu quis muito que ele aceitasse meu pedido de chamá-lo e tratá-lo como um pai.
Cappela, foi um homem incrivelmente sábio. Nós morávamos em uma pequena cidade que, as pessoas mais pobres, o tratavam como rei. O que deixara as pessoas mais ricas com certa raiva. Cappela era um velho com suas verdades, quais ele falara sobre, na hora em que lhe apetecesse; daquela maneira: “doa a quem doer”. Conquistou muitas pessoas e muitos inimigos.
Mas ele era um médico. Possuía um consultório. Porém, não era qualquer médico. Ele era um médico da vida. Recebera seus pacientes numa salinha pequena, com uma mesa acompanhada de três cadeiras, e, uma cama onde os pacientes se deitavam. Os pacientes contavam sobre suas vidas e dores, e, o Sábio Coringão, como alguns o chamavam, dava-lhes conselhos e força para que continuassem. – Um terapeuta sem faculdade.
Certo dia, assisti a uma consulta. Ele entregara um liquido para o paciente beber, o paciente deitara na cama, e dormira. Antes disso, Cappela explicara ao paciente que, voltar ao passado não é uma brincadeira. Deveria se ter muito cuidado, porque assim como nós podemos voltar ao passado, o passado poderia vir à nós.
Achei tudo muito estranho. Não era acostumada às tradições e conhecimentos de Cappela. Após a consulta, sentei em uma das cadeiras e perguntei o que havia acontecido. Foi quando ele me explicou que, ao beber aquele liquido a pessoa voltaria ao passado. Mas não o passado de [anos] que se foram, e, sim, o passado de [vidas] que não deveriam voltar.
Foi quando, depois de muito tempo sem dizer, ele repetiu que havia uma grande dor dentro de mim. E que eu só poderia entender meus tormentos quando compreendesse o meu passado.
Fui para casa, pensei, e me perguntei várias vezes até me convencer: “Por que não?”.
N’outro dia, fui até o consultório e pedi para tomar o liquido. Cappela me lembrou o quão era perigoso reviver o passado, e que deveria refletir melhor. Mas eu estava decidida. Eu queria acabar com o meu sofrimento.

Tomei. Deitei. Dormi.

Acordei. Eu enxergara tudo; porém, era noite. Em um pequeno deslize, me desequilibrei e quase caí. Eu estava em cima de um galho de árvore. Foi quando olhei para meus pés e vi patas. Olhei para meus braços e vi asas. Tentei falar, escutei sons estranhos. – Eu era um pássaro. – Subitamente surgiu um sentimento de dúvida. Eu era um pássaro. Mas que pássaro era eu? – “Quem sou eu?”.
Naquele devaneio me desequilibrei novamente e caí da árvore. Tentei bater as asas, mas não sabia como. Caí no chão e esperei o dia clarear. Fechara os olhos como quem espera sono, e como em vida, o sono não veio. Concluí que essa era a única coisa que não mudara – eu nunca tenho sono.
Vi animais passarem, escutei o barulho do vento nas árvores, fitei o céu durante toda a noite e as estrelas brilhavam. As estrelas brilhavam e a lua estava cheia, achei estranho. Nunca havia visto lua cheia com céu estrelado. Escutei uivados. E logo o dia amanheceu. O nascer do sol foi lindo. Ainda que não soubesse como, minha pele ficou arrepiada com aquela beleza.
De manhã, tentei me equilibrar com as patas até conseguir andar. Imaginei os outros animais debochando do pássaro que tentara andar quando poderia voar. Logo comecei a mexer as asas até conseguir me mover. Passou-se um dia, dois dias, três dias, e, no quarto dia consegui ganhar os céus. Só aí comecei a me sentir um pássaro. E foi fácil sair por aí, sem medo de nada, vendo tudo do alto.
Quando sentava em um galho, e avistava algum inseto, de instinto eu o comera. Uma noite, um roedor passou correndo por mim, e eu corri atrás dele sem pensar, o engoli. Depois vomitei seus ossos. – Foi quando entendi que não importa a sua espécie, você obedece a seus instintos.
O desejo de saber quem eu era aumentava. Numa tarde, estava sentada num galho quando escutei, ao longe, o barulho de patas batendo forte no chão. Fiquei atenta ao som e, de repente, um lobo se aproximou. No começo, senti medo. Mas os olhos doces que me fitavam me deram alguma segurança. Logo percebi que eu conhecera aquele lobo.
O lobo perguntou-me se senti a sua falta. Sim. Os animais conversam entre eles, mas não é português, inglês ou francês. É uma linguagem que só os animais entendem. E eu não sei como, mas foi fácil me comunicar com aquele animal de quatro patas e pêlos sujos.
Disse-lhe que senti a falta, mas que não soubera mais quem era ele. Que, de certo modo, eu não soubera mais quem eu era. Que tudo estava me assustando, tomavam-se rumos diferentes, e eu não sabia acompanhá-los. Minhas costas, se é que ainda possuía costas, congelavam ao pensar no que viria.
O lobo me estranhou. Mas com algumas palavras me acalmou. Quando tudo pareceu mais simples, perguntei à ele quem eu era. E ele disse: “Não sei quem és. Sei apenas quem sou.”. De súbito, perguntei quem era ele. E ele respondeu: “Sou quem te ama.”.
Aquilo tudo me deixara com poucas reações e cabeça distante. Os animais amam como as pessoas. O amor deve ser mesmo aquilo que move o mundo. Talvez, se nós acreditássemos mais na força do amor, o mundo seria um lugar melhor para se viver.
Com o meu silêncio, o lobo se esquivou, e ensaiou um ir embora correndo. Mas voei até ele e o impedi. Pedi para que ficasse, disse que eu não soubera quem era ele, mas algo dentro de mim dizia que eu precisava dele ao meu lado. O lobo, então, olhou-me com olhos calmos e cheios de misericórdia, e afagou minhas penas. Levei aquilo como um gesto de quem desculpa.
Voltei ao meu galho e ele se deitou em baixo da sombra de minha árvore. Conversamos sobre a floresta e sobre a vida. Em alguns momentos, senti vontade de sorrir, porque eu duvidara da vida dos animais. Mas, a fé daquele lobo, tomava-me por inteira. Quando tudo ficou em silêncio, disse-lhe que se eu pudesse me ver, talvez eu saberia quem sou.
O lobo levantou-se em ato súbito e disse para que eu voasse até o Rio Callandria, e assistisse o meu reflexo. Embora dentro de mim eu tivesse certeza que saberia voar até lá. Pedi para que ele me levasse.
O lobo correu depressa, e eu o segui voando. No meio do caminho, aconteceram brincadeiras. Tão desastrado quanto eu, o lobo sujo, perdera a sintonia das patas e despencara ao chão algumas três ou quatro vezes. Sorri envergonhada dos desastres daquele animal.
Quando chegamos ao Rio Callandria, pedi para que ele me deixasse sozinha. Às vezes, é preciso distanciar-se e manter-se só, para saber quem somos e quem queremos ser.
O lobo se foi, e a cada passo, meu coração apertava. Mas eu deveria ser forte. Fui até a beira do rio e olhei o meu reflexo. – Eu era uma coruja. – O animal que senta no ombro da deusa da sabedoria, Atena. Que avisa a morte às casas que visita. A águia da noite. Aquela que traz segredos ocultos à quem sabe enxergar seus olhos. – A Coruja.
Voltei para trás perdida em pensamentos. Uma coruja? Logo eu que odiara aquele animal em vida, e, que, morrera de medo das corujas que cantavam? Logo eu seria uma delas em outra vida. Irônica vida! Se alguém pudesse entender os caminhos que nossas vidas tomam, eu poderia esquecer Deus e tomá-lo nas costas. Mas isso não é possível. Os caminhos da vida são demasiadamente incompreensíveis. – Embora, muitas vezes, eu pudesse confundir Cappela com um reflexo perfeito do Pai de todas as vidas.

Dormi.

Acordei. Ao abrir os olhos levei grande susto. Da floresta imensa em verde eu me transportara à uma salinha de paredes cor salmão. Estava no consultório do velho. Senti frio, medo e tentei bater os braços como se ainda possuísse asas. Então escutei o barulho da risada de Cappela e percebi que ele estava me espiando.
– Um pássaro? – perguntou ele.
– Uma coruja.
– Seus olhos furiosos lembram os olhos de uma.
– Cappela, havia um lobo. E eu conhecera aquele lobo.
Contei à ele que o lobo me olhara da mesma forma que Hugo. Disse-lhe que eu não soubera como, mas havia me comunicado com o animal, que eu entendera suas palavras da mesma forma que entendera Hugo. E que a ligação que eu sentira entre nós, era a mesma que eu sentira ao dar às mãos à meu bem-amado.
Hugo, era o homem que seria o homem de minha vida. Nós nos conhecemos há alguns anos. Nos amamos. Mas não conseguimos ficar juntos. – Quando as pessoas optam por liberdade, devem desistir do amor. E foi isso que nós dois sempre fizemos: – desistir.
Cappela me explicou que os lobos são animais ágeis e que significam proteção. Que são corajosos para lutar pelo que desejam, e por isso, as presas grandes. E que os lobos se apaixonam apenas uma vez na vida, por uma única parceira, após isso, se a parceira morrer, eles ficam sozinhos para sempre.
– Os grandes afetos das outras vidas, podem continuar. O amor nunca acaba. É claro que, hoje aqui e ali, vocês podem não terminar juntos, como muitos outros, que, transportaram amor de uma vida à outra e o amor não resistiu. Mas uma coisa é certa, querida Clarice. O que lhe atormenta é o final da história.
Os finais sempre me atormentaram, pensei em responder à Cappela. Mas dei de costas e saí. Prefiro o silêncio muitas vezes. – Pensei em ir atrás de Hugo e contar-lhe tudo o que havia acontecido. Mas estávamos separados fazia tanto tempo que achei que não seria bom para mim revê-lo. – Ah! Esse é o problema dos solitários... Nós nos amamos tanto que sempre pensamos no que é melhor para nós, esquecemos do que é melhor para o amor, e insistimos na idéia de que somos sozinhos.
Fiquei andando pelo Jardim Central de Alélica e o som das árvores pareciam conversar comigo. Eu tinha que voltar lá e ver o final da história entre o lobo e a coruja. Como seria possível? Dois animais totalmente diferentes se apaixonarem? Desafiando as leis da natureza e da ciência, se é que essas leis são mesmo verdadeiras. Começo a acreditar que a única coisa impossível é aquilo que não acontece nos sonhos.
Passaram-se duas semanas. E a minha vida continuara a andar da mesma maneira de sempre. Acordar, ir trabalhar, voltar para casa e dormir. Estas eram as únicas coisas que eu fizera. E, mesmo assim, fizera com muito gosto. Mas a imagem daquele lobo não deixara minha mente em paz. Eu tinha que voltar lá e contar-lhe que nós nos veríamos outra vez. Eu tinha que voltar lá e pedir para que ele cuidasse do meu coração de pássaro, porque quando se tornasse homem, ele não faria isso. (...)
Numa sexta-feira pela manhã, fui até o consultório e pedi à Cappela para beber do mesmo liquido.
– Você pode, mas eu não indicaria. Não tevês somente uma vida. O homem é a última passagem, fostes muitas coisas antes daqui, não há como beber e voltar a mesma vida duas vezes. São respostas para o hoje, suas perguntas não são as mesmas de ontem. A mente do ser humano é um perigo constante.
– Eu sei quais são minhas perguntas. E quero tentar.
Quase mostrei as presas de lobo que eu não tive para que ele me entregasse o liquido. Bebi. Deitei. Dormi.

Acordei. Minhas patas estavam fracas, minha cabeça latejava e minha boca estava seca. Tentara, mas não conseguira emitir nenhum som. Olhei aos lados e eu estava deitada no chão. No céu um pássaro marrom voara sobre mim. Quando escutei sua voz, eu soube, eu não era uma Coruja. Respirei. Olhei meu corpo, e entendi, – eu era o lobo. Meus olhos se fecharam. A Coruja pedira para que eu não fosse, mas eu fui. Não haveria mais nada a se fazer.

Acordei. E a mesma zonzaria d’outra vez atacou minha cabeça. Voltei ao normal com o barulho da caneta que Cappela batia na mesa. Ele não precisou perguntar nada, seus olhos curiosos perguntaram por ele.
– Eu não era Coruja. Nunca fui Coruja.
– Era lobo.
– Como sabe?
– Sei apenas que precisara ser Coruja para entender quem era Hugo. Hugo que vive à procura de saber quem é ele. Precisara sentir as curiosidades de saber sobre a vida e a liberdade de voar por aí, para entender a cabeça de Hugo. Precisara olhar seus próprios olhos e sentir o encanto que Hugo sente, e a dor que invade seu peito quando ele tem que lhe mandar ir embora. Pois é fardo de outras vidas que vocês carregam. Apaixonaram-se em outra vida, e nunca conseguiram ficar juntos, mas entenda, Clarice; Essa é a última chance de vocês dois. Depois daqui, o acerto é com Deus. Vocês precisam se encontrar de uma vez ou colocar um fim nessa história.
– Já colocamos fim.
– Só é final quando se deixa de sentir.
– Nunca vou deixar de sentir.
– Quando você se machuca com um vidro quebrado dói. Não dói?
– Dói.
– Mas, depois de um tempo, a ferida se fecha e há cura. Então a dor some. Se os machucados param de sentir, o amor também pára.
– Então não é amor.
– O que é amor?
– Não sei.
– É isso. Coruja e Lobo nunca poderiam ficar juntos. A Coruja não se alimenta de Lobo e o Lobo não deve se alimentar da Coruja. Todas as espécies podem amar. Mas somente o homem e a mulher podem escolher o que fazer com esse amor. Você sabe que o Lobo nunca se apaixonou por outro animal? E a Coruja, não podendo ficar com ele, ficou sozinha em seu ninho. Enquanto o Lobo corre, a Coruja voa. Enquanto o Lobo demonstra segurança e coragem, a Coruja demonstra sabedoria e reflexão. Porém, os dois amam a noite e a lua cheia. E os dois caçam. É preciso que saibam descobrir o que é o amor.
– Só que, eu, o Lobo, morreu.
– Então não o deixe morrer outra vez.
– O que eu devo fazer?
– O que um Lobo faria?
– Lobos cantam para lua.
– Então faça a Coruja lhe escutar.