"Então, a voz que desaparecera há meses soou vagarosamente em meus ouvidos: “guarde no seu bolso”. Imediatamente coloquei as mãos no jeans velho que vestiam minhas pernas, nenhum bolso. Apenas o rasgado das linhas e a cor que desbotava. Mas nenhum bolso. Respirei. Fechei os olhos e pensei: Onde eu devo guardar esses segredos? Não são pecados, tampouco me arrependo de tê-los cometidos. Não quero escondê-los e nem aprisioná-los. Quero guardar. São lembranças que abastecem a minha alma e são delas que eu me reinvento todos os dias para levantar e seguir em frente. São esses pequenos segredos que formam o que eu sou. De repente, a voz insistiu: “Tem um bolso, em algum lugar, que guarda amores e saudades. Coisas que nem te lembras mais. Do primeiro passo aos dias de hoje. Um bolso que poderia carregar canetas, mas que carrega memórias.”. – Onde está o meu bolso?, insisti. – Ora, menina! Está em tudo que produz, em tudo o que tocas, nas pessoas que já encontrou. Na arte, no trabalho, numa conversa, num amigo que seguiu o teu conselho, no filho que gerou, em tudo que tu faz, diz e repassa. As coisas que tu produz, como a atitude de pedir desculpas ou agradecer, é o que fica quando nada mais existir."
Aliviada em aceitar as suas perdas, Margarida fez uma trança nos cabelos e resolveu caminhar pela cidade. Avistou as crianças brincando no parque e os jovens ciclistas apostando corrida. Não conseguiu fazer vista grossa ao caos da cidade, ao esgoto a céu aberto e nem ao trânsito que atravessara ruas. Mas, ali, em seus passos curtos, pôde escutar os barulhos silenciosos do desespero. – Ela percebeu, quase sem querer, que todos nós temos horários atrasados, empregos ruins, um resfriado não curado ou uma vontade imensa de sair correndo. E, mesmo que seja segredo, são esses importunos que fazem ser quem somos.
Você não conhece Margarida. Nome de flor, cabelos castanhos, sardas no rosto e olhos doces. Aparentemente uma mulher, aos seus trinta anos, feliz e com sede de vida. Aparentemente. Margarida era esquizofrênica. Escutara vozes, tivera visões e os pensamentos se perdiam em grandes abismos. Foi abandonada pelos pais, amigos, marido e filhos. As pessoas próximas não puderam mais suportar a aflição de vê-la partindo aos poucos e resolveram fugir da dor. Desistiram daquela mulher que perdera a serenidade e vivera aflita. No entanto, Margarida, que já não tivera mais a sã consciência de quem era, parecera não desistir de si própria. Ela confiou nos próprios passos e, ainda que solitários, continuou andando.
Todas as noites, mesmo com o incomodo das vozes, Margarida se ajoelhara e pedira a Deus para lhe mostrar o caminho. Mesmo com os pés cansados e a fraqueza do corpo, Margarida continuara a crer no impossível. Porque a fé é realmente isso: confiar que aquilo que esperamos irá acontecer, mesmo que em nossa frente nenhuma luz exista. – Então, a mais louca das mulheres, se ajoelhara todas as noites, pedindo o zelo de quem a criou.
Certo dia, desapontada com o carteiro que não passara pela rua, ela resolveu escrever cartas e deixar na caixa de correspondências de seus vizinhos. Em realidade, as cartas de Margarida eram bilhetes. Todos com mensagens de esperança. Ao final, ela assinara seus escritos como “Flor” e pedira que, cuidadosamente, alguém pudesse lhe regar.
Alguns vizinhos rasgaram os bilhetes, outros nem sequer abriram, houveram aqueles que leram e não se importaram, mas também houve quem se encheu do anseio de ter esperança. Ao ler a mensagem de fé, contida no bilhete, o jovem Davi resolveu procurar o autor.
Davi era um jovem rapaz de quatorze anos. Não tinha amigos, pois era taxado de “estranho” pelos colegas da escola. Os pais trabalhavam tanto que não conseguiam perceber a tristeza do garoto. Numa quarta-feira, sua mãe voltou do trabalho e encontrou a casa silenciosa, chamou por Davi que não respondeu, e foi direto a cozinha preparar o jantar como fizera todas as noites. Quando o jantar finalmente começara a cheirar bem, sua mãe subiu as escadas, atravessou o corredor e abriu a porta do quarto. Davi estava caído ao chão. Aos quatorze anos o menino se enchera de remédios na tentativa de cessar o vazio.
Após o ocorrido, os pais de Davi não lhe tiravam mais os olhos. Insistiam que o garoto praticasse esportes, fizesse aulas de outros idiomas, frequentasse o grupo de jovens da igreja. Mas, amor, eles não sabiam dar. Há pais e mães que simplesmente não sabem exteriorizar o amor que sentem pelos seus, não sabem dialogar e tampouco passar um tempo. Era o caso dos pais de Davi que não sabiam enxergar como o menino só precisara de uma direção.
Antes de odiar os pais de Davi – ou qualquer outra pessoa – é importante que você o saiba: Antes do ódio é necessário tentar compreender. Compreender os motivos daquelas pessoas, como foram criadas ou como são as suas rotinas. – Não é que os pais do garoto não o amassem, eles o amam. Mas esses pais que levam cinquenta anos de idade em suas marcas, foram criados em épocas distintas, épocas em que o amor existia mas não era demonstrado.
Quando recebeu o bilhete, Davi quis imediatamente ir atrás de quem lhe escreveu. No final de sua esperança havia a vontade enorme de possuir um amigo e, inocentemente, ele acreditou que alguém o observara e gostaria de fazer amizade. – Para ele, o bilhete era único e premeditado. – No entanto, o rapaz se conteve. Esperou outro bilhete por dias e mais dias. Até que, durante o culto, o pastor recitou: “dê o primeiro passo”. E ele foi atrás do seu novo amigo.
O bairro era pequeno mas as buscas duraram meses. Fizera uma lista com os nomes de todas as possíveis pessoas, roubara cartas para comparar as letras, chegara a sair batendo de porta em porta para perguntar: “De quem é este bilhete?”.
Já cansado de investigar a vizinhança, Davi sentou na porta de sua casa e pediu com fé para encontrar o seu amigo. De repente, a esquizofrênica Margarida começou a correr pela rua e gritar desesperadamente por ajuda. Davi, sem saber o que fazer, ligou para a polícia. Quando acalmados os nervos de Margarida, Davi se aproximou e ela implorou: “Me dê um pouco de água”. Subitamente o menino se lembrou da flor e de como gostaria de regá-la. De imediato a questionou sobre o bilhete e Margaria apenas lhe sorriu. Aquele sorriso selou uma amizade.
Margarida e Davi se aproximaram. No começo ele tivera um pouco de receio, mas aos poucos aquela senhora de trinta anos foi lhe ganhando o coração. Ele pensara que, ainda que louca, gostaria que sua mãe fosse tão sua amiga quanto Margarida. E, num gesto de bondade, pediu aos seus pais que pagassem o tratamento da mulher.
Davi zelara para que a amiga tomasse os remédios com pontualidade. De pouquinho em pouquinho, a cada novo dia, Margarida se curara dos tormentos. Era um milagre que acontecia aos poucos. Era tão devagar que as pessoas quase não percebiam a beleza daquela cura. O impossível aconteceu por intermédio de duas pessoas – por meio de uma amizade.
É claro que os dois frequentaram médicos, mas nenhum conseguiria ir em frente se não fosse a mão estendida do outro. Todos os dias conversavam e, no meio das conversas, pareciam receber recados de Deus. – Eu realmente acredito que Deus está nas pessoas. Em cada gesto, em cada palavra. Ele age por meio delas.
Deus não pode vir diretamente e falar tudo o que precisamos escutar, então aos poucos ele coloca pessoas em nossas vidas que, a cada novo dia, trazem um novo recado d'Ele. Repito: Deus age por meio das pessoas que nos rodeiam.
Margarida, já curada e livre das suas costas cansadas, resolveu caminhar pela cidade. Descobriu avistando a impaciência das pessoas que se dirigiam aos seus empregos que, todos nós, temos alguma coisa para contar. Às vezes, nós só precisamos sentar e ouvir.