O velho tinha barba grisalha e olhos negros. A pele era desgastada pelo sol e castigada pelos anos. Mas seus trajes brancos eram tão límpidos quanto às roupas do chefe bancário. Ele me olhara. Com seus olhos atentos e sábios, o velho me olhara. Me deixara envergonhada, com medo, e sem reação. Pois do mesmo modo que me olhara curioso; dentro de mim, levantavam-se curiosidades sobre as rugas de seu rosto. –
Qual é a sua história,
velho
Cappela
?
Cappela, era um homem que levara nas costas seus setenta e dois anos de idade. 72, sempre me foi um número de sorte. Depois de questionar-me, muitas vezes, por que Cappela só apareceu em minha vida neste momento, cheguei a conclusão que, aos setenta e dois de sorte era o momento em que Cappela deveria me encontrar.
Suas crenças sobre fé em Deus faziam-me duvidar das minhas crenças sobre a vida. Muitas vezes, tive medo de não poder comandar minha vida, então vieram as palavras de Cappela:
– A vida é sua. Deus a deu para ti e tu tem a chance de vivê-la. As escolhas são tuas, tudo que entra e sai desta vida é por sua conta. Deus não poderá intervir em muitas coisas. Ele poderá lhe confortar, proteger e iluminar. Mas as decisões e ações serão sempre tuas. O acerto com ele é no final desta.
Assim eu perdera o medo de que os meus sonhos não se realizassem e comecei a pedir forças, para que Deus não me abandonasse, e, principalmente, não deixasse que eu O abandonasse.
A primeira vez que Cappela dirigiu a palavra à meus ouvidos, fez-me duvidar da lucidez que eu havia lido em seus olhos. Só após um tempo foi que eu entendi que, Cappela se comunica assim com quem ele pode enxergar luz dentro da alma. Sempre me achei pequena, e todas as vezes que ele tentara mostrar-me a alma, eu achei que fosse mentira. E achei que fosse louco.
– Há uma grande dor aí dentro.
”Há uma grande dor aí dentro”, ele repetira em todos os finais de nossas primeiras conversas. Eu sentira como se aquele velho soubesse de algo, e percebera o quanto queria me despertar enigmas. Era como se em cada palavra ele escondesse um: “vai, descobre, corre atrás.”.
Como deveria ser, o tempo passou. E, aos poucos, cada pergunta ganhou resposta. Cada palavra do velho Cappela ganhou compreensão dentro de mim. E eu quis muito que ele aceitasse meu pedido de chamá-lo e tratá-lo como um pai.
Cappela, foi um homem incrivelmente sábio. Nós morávamos em uma pequena cidade que, as pessoas mais pobres, o tratavam como rei. O que deixara as pessoas mais ricas com certa raiva. Cappela era um velho com suas verdades, quais ele falara sobre, na hora em que lhe apetecesse; daquela maneira: “doa a quem doer”. Conquistou muitas pessoas e muitos inimigos.
Mas ele era um médico. Possuía um consultório. Porém, não era qualquer médico. Ele era um médico da vida. Recebera seus pacientes numa salinha pequena, com uma mesa acompanhada de três cadeiras, e, uma cama onde os pacientes se deitavam. Os pacientes contavam sobre suas vidas e dores, e, o Sábio Coringão, como alguns o chamavam, dava-lhes conselhos e força para que continuassem. – Um terapeuta sem faculdade.
Certo dia, assisti a uma consulta. Ele entregara um liquido para o paciente beber, o paciente deitara na cama, e dormira. Antes disso, Cappela explicara ao paciente que, voltar ao passado não é uma brincadeira. Deveria se ter muito cuidado, porque assim como nós podemos voltar ao passado, o passado poderia vir à nós.
Achei tudo muito estranho. Não era acostumada às tradições e conhecimentos de Cappela. Após a consulta, sentei em uma das cadeiras e perguntei o que havia acontecido. Foi quando ele me explicou que, ao beber aquele liquido a pessoa voltaria ao passado. Mas não o passado de [anos] que se foram, e, sim, o passado de [vidas] que não deveriam voltar.
Foi quando, depois de muito tempo sem dizer, ele repetiu que havia uma grande dor dentro de mim. E que eu só poderia entender meus tormentos quando compreendesse o meu passado.
Fui para casa, pensei, e me perguntei várias vezes até me convencer: “Por que não?”.
N’outro dia, fui até o consultório e pedi para tomar o liquido. Cappela me lembrou o quão era perigoso reviver o passado, e que deveria refletir melhor. Mas eu estava decidida. Eu queria acabar com o meu sofrimento.
Tomei. Deitei. Dormi.
Acordei. Eu enxergara tudo; porém, era noite. Em um pequeno deslize, me desequilibrei e quase caí. Eu estava em cima de um galho de árvore. Foi quando olhei para meus pés e vi patas. Olhei para meus braços e vi asas. Tentei falar, escutei sons estranhos. – Eu era um pássaro. – Subitamente surgiu um sentimento de dúvida. Eu era um pássaro. Mas que pássaro era eu? – “Quem sou eu?”.
Naquele devaneio me desequilibrei novamente e caí da árvore. Tentei bater as asas, mas não sabia como. Caí no chão e esperei o dia clarear. Fechara os olhos como quem espera sono, e como em vida, o sono não veio. Concluí que essa era a única coisa que não mudara – eu nunca tenho sono.
Vi animais passarem, escutei o barulho do vento nas árvores, fitei o céu durante toda a noite e as estrelas brilhavam. As estrelas brilhavam e a lua estava cheia, achei estranho. Nunca havia visto lua cheia com céu estrelado. Escutei uivados. E logo o dia amanheceu. O nascer do sol foi lindo. Ainda que não soubesse como, minha pele ficou arrepiada com aquela beleza.
De manhã, tentei me equilibrar com as patas até conseguir andar. Imaginei os outros animais debochando do pássaro que tentara andar quando poderia voar. Logo comecei a mexer as asas até conseguir me mover. Passou-se um dia, dois dias, três dias, e, no quarto dia consegui ganhar os céus. Só aí comecei a me sentir um pássaro. E foi fácil sair por aí, sem medo de nada, vendo tudo do alto.
Quando sentava em um galho, e avistava algum inseto, de instinto eu o comera. Uma noite, um roedor passou correndo por mim, e eu corri atrás dele sem pensar, o engoli. Depois vomitei seus ossos. – Foi quando entendi que não importa a sua espécie, você obedece a seus instintos.
O desejo de saber quem eu era aumentava. Numa tarde, estava sentada num galho quando escutei, ao longe, o barulho de patas batendo forte no chão. Fiquei atenta ao som e, de repente, um lobo se aproximou. No começo, senti medo. Mas os olhos doces que me fitavam me deram alguma segurança. Logo percebi que eu conhecera aquele lobo.
O lobo perguntou-me se senti a sua falta. Sim. Os animais conversam entre eles, mas não é português, inglês ou francês. É uma linguagem que só os animais entendem. E eu não sei como, mas foi fácil me comunicar com aquele animal de quatro patas e pêlos sujos.
Disse-lhe que senti a falta, mas que não soubera mais quem era ele. Que, de certo modo, eu não soubera mais quem eu era. Que tudo estava me assustando, tomavam-se rumos diferentes, e eu não sabia acompanhá-los. Minhas costas, se é que ainda possuía costas, congelavam ao pensar no que viria.
O lobo me estranhou. Mas com algumas palavras me acalmou. Quando tudo pareceu mais simples, perguntei à ele quem eu era. E ele disse: “Não sei quem és. Sei apenas quem sou.”. De súbito, perguntei quem era ele. E ele respondeu: “Sou quem te ama.”.
Aquilo tudo me deixara com poucas reações e cabeça distante. Os animais amam como as pessoas. O amor deve ser mesmo aquilo que move o mundo. Talvez, se nós acreditássemos mais na força do amor, o mundo seria um lugar melhor para se viver.
Com o meu silêncio, o lobo se esquivou, e ensaiou um ir embora correndo. Mas voei até ele e o impedi. Pedi para que ficasse, disse que eu não soubera quem era ele, mas algo dentro de mim dizia que eu precisava dele ao meu lado. O lobo, então, olhou-me com olhos calmos e cheios de misericórdia, e afagou minhas penas. Levei aquilo como um gesto de quem desculpa.
Voltei ao meu galho e ele se deitou em baixo da sombra de minha árvore. Conversamos sobre a floresta e sobre a vida. Em alguns momentos, senti vontade de sorrir, porque eu duvidara da vida dos animais. Mas, a fé daquele lobo, tomava-me por inteira. Quando tudo ficou em silêncio, disse-lhe que se eu pudesse me ver, talvez eu saberia quem sou.
O lobo levantou-se em ato súbito e disse para que eu voasse até o Rio Callandria, e assistisse o meu reflexo. Embora dentro de mim eu tivesse certeza que saberia voar até lá. Pedi para que ele me levasse.
O lobo correu depressa, e eu o segui voando. No meio do caminho, aconteceram brincadeiras. Tão desastrado quanto eu, o lobo sujo, perdera a sintonia das patas e despencara ao chão algumas três ou quatro vezes. Sorri envergonhada dos desastres daquele animal.
Quando chegamos ao Rio Callandria, pedi para que ele me deixasse sozinha. Às vezes, é preciso distanciar-se e manter-se só, para saber quem somos e quem queremos ser.
O lobo se foi, e a cada passo, meu coração apertava. Mas eu deveria ser forte. Fui até a beira do rio e olhei o meu reflexo. – Eu era uma coruja. – O animal que senta no ombro da deusa da sabedoria, Atena. Que avisa a morte às casas que visita. A águia da noite. Aquela que traz segredos ocultos à quem sabe enxergar seus olhos. – A Coruja.
Voltei para trás perdida em pensamentos. Uma coruja? Logo eu que odiara aquele animal em vida, e, que, morrera de medo das corujas que cantavam? Logo eu seria uma delas em outra vida. Irônica vida! Se alguém pudesse entender os caminhos que nossas vidas tomam, eu poderia esquecer Deus e tomá-lo nas costas. Mas isso não é possível. Os caminhos da vida são demasiadamente incompreensíveis. – Embora, muitas vezes, eu pudesse confundir Cappela com um reflexo perfeito do Pai de todas as vidas.
Dormi.
Acordei. Ao abrir os olhos levei grande susto. Da floresta imensa em verde eu me transportara à uma salinha de paredes cor salmão. Estava no consultório do velho. Senti frio, medo e tentei bater os braços como se ainda possuísse asas. Então escutei o barulho da risada de Cappela e percebi que ele estava me espiando.
– Um pássaro? – perguntou ele.
– Uma coruja.
– Seus olhos furiosos lembram os olhos de uma.
– Cappela, havia um lobo. E eu conhecera aquele lobo.
Contei à ele que o lobo me olhara da mesma forma que Hugo. Disse-lhe que eu não soubera como, mas havia me comunicado com o animal, que eu entendera suas palavras da mesma forma que entendera Hugo. E que a ligação que eu sentira entre nós, era a mesma que eu sentira ao dar às mãos à meu bem-amado.
Hugo, era o homem que seria o homem de minha vida. Nós nos conhecemos há alguns anos. Nos amamos. Mas não conseguimos ficar juntos. – Quando as pessoas optam por liberdade, devem desistir do amor. E foi isso que nós dois sempre fizemos: – desistir.
Cappela me explicou que os lobos são animais ágeis e que significam proteção. Que são corajosos para lutar pelo que desejam, e por isso, as presas grandes. E que os lobos se apaixonam apenas uma vez na vida, por uma única parceira, após isso, se a parceira morrer, eles ficam sozinhos para sempre.
– Os grandes afetos das outras vidas, podem continuar. O amor nunca acaba. É claro que, hoje aqui e ali, vocês podem não terminar juntos, como muitos outros, que, transportaram amor de uma vida à outra e o amor não resistiu. Mas uma coisa é certa, querida Clarice. O que lhe atormenta é o final da história.
Os finais sempre me atormentaram, pensei em responder à Cappela. Mas dei de costas e saí. Prefiro o silêncio muitas vezes. – Pensei em ir atrás de Hugo e contar-lhe tudo o que havia acontecido. Mas estávamos separados fazia tanto tempo que achei que não seria bom para mim revê-lo. – Ah! Esse é o problema dos solitários... Nós nos amamos tanto que sempre pensamos no que é melhor para nós, esquecemos do que é melhor para o amor, e insistimos na idéia de que somos sozinhos.
Fiquei andando pelo Jardim Central de Alélica e o som das árvores pareciam conversar comigo. Eu tinha que voltar lá e ver o final da história entre o lobo e a coruja. Como seria possível? Dois animais totalmente diferentes se apaixonarem? Desafiando as leis da natureza e da ciência, se é que essas leis são mesmo verdadeiras. Começo a acreditar que a única coisa impossível é aquilo que não acontece nos sonhos.
Passaram-se duas semanas. E a minha vida continuara a andar da mesma maneira de sempre. Acordar, ir trabalhar, voltar para casa e dormir. Estas eram as únicas coisas que eu fizera. E, mesmo assim, fizera com muito gosto. Mas a imagem daquele lobo não deixara minha mente em paz. Eu tinha que voltar lá e contar-lhe que nós nos veríamos outra vez. Eu tinha que voltar lá e pedir para que ele cuidasse do meu coração de pássaro, porque quando se tornasse homem, ele não faria isso. (...)
Numa sexta-feira pela manhã, fui até o consultório e pedi à Cappela para beber do mesmo liquido.
– Você pode, mas eu não indicaria. Não tevês somente uma vida. O homem é a última passagem, fostes muitas coisas antes daqui, não há como beber e voltar a mesma vida duas vezes. São respostas para o hoje, suas perguntas não são as mesmas de ontem. A mente do ser humano é um perigo constante.
– Eu sei quais são minhas perguntas. E quero tentar.
Quase mostrei as presas de lobo que eu não tive para que ele me entregasse o liquido. Bebi. Deitei. Dormi.
Acordei. Minhas patas estavam fracas, minha cabeça latejava e minha boca estava seca. Tentara, mas não conseguira emitir nenhum som. Olhei aos lados e eu estava deitada no chão. No céu um pássaro marrom voara sobre mim. Quando escutei sua voz, eu soube, eu não era uma Coruja. Respirei. Olhei meu corpo, e entendi, – eu era o lobo. Meus olhos se fecharam. A Coruja pedira para que eu não fosse, mas eu fui. Não haveria mais nada a se fazer.
Acordei. E a mesma zonzaria d’outra vez atacou minha cabeça. Voltei ao normal com o barulho da caneta que Cappela batia na mesa. Ele não precisou perguntar nada, seus olhos curiosos perguntaram por ele.
– Eu não era Coruja. Nunca fui Coruja.
– Era lobo.
– Como sabe?
– Sei apenas que precisara ser Coruja para entender quem era Hugo. Hugo que vive à procura de saber quem é ele. Precisara sentir as curiosidades de saber sobre a vida e a liberdade de voar por aí, para entender a cabeça de Hugo. Precisara olhar seus próprios olhos e sentir o encanto que Hugo sente, e a dor que invade seu peito quando ele tem que lhe mandar ir embora. Pois é fardo de outras vidas que vocês carregam. Apaixonaram-se em outra vida, e nunca conseguiram ficar juntos, mas entenda, Clarice; Essa é a última chance de vocês dois. Depois daqui, o acerto é com Deus. Vocês precisam se encontrar de uma vez ou colocar um fim nessa história.
– Já colocamos fim.
– Só é final quando se deixa de sentir.
– Nunca vou deixar de sentir.
– Quando você se machuca com um vidro quebrado dói. Não dói?
– Dói.
– Mas, depois de um tempo, a ferida se fecha e há cura. Então a dor some. Se os machucados param de sentir, o amor também pára.
– Então não é amor.
– O que é amor?
– Não sei.
– É isso. Coruja e Lobo nunca poderiam ficar juntos. A Coruja não se alimenta de Lobo e o Lobo não deve se alimentar da Coruja. Todas as espécies podem amar. Mas somente o homem e a mulher podem escolher o que fazer com esse amor. Você sabe que o Lobo nunca se apaixonou por outro animal? E a Coruja, não podendo ficar com ele, ficou sozinha em seu ninho. Enquanto o Lobo corre, a Coruja voa. Enquanto o Lobo demonstra segurança e coragem, a Coruja demonstra sabedoria e reflexão. Porém, os dois amam a noite e a lua cheia. E os dois caçam. É preciso que saibam descobrir o que é o amor.
– Só que, eu, o Lobo, morreu.
– Então não o deixe morrer outra vez.
– O que eu devo fazer?
– O que um Lobo faria?
– Lobos cantam para lua.
– Então faça a Coruja lhe escutar.