– Presente.
Chegara atrasado todos os dias. Abrira a porta, olhara a sala meio por cima, entrara e começara a falar. Falar, falar, falar, falar, falar e falar. Eduardo nunca tivera trava na língua. Quando percebera que eu ficara irritada por tirar a atenção dos alunos, ele me olhara com cara de quem se desculpara e dizia: “Desculpe, professora. Prometo não fazer de novo.”. – Eu nunca conseguira dizer não à ele.
Chegara atrasado todos os dias. Abrira a porta, olhara a sala meio por cima, entrara e começara a falar. Falar, falar, falar, falar, falar e falar. Eduardo nunca tivera trava na língua. Quando percebera que eu ficara irritada por tirar a atenção dos alunos, ele me olhara com cara de quem se desculpara e dizia: “Desculpe, professora. Prometo não fazer de novo.”. – Eu nunca conseguira dizer não à ele.
Havia ali olhos de criança, graça, beleza e domínio. Era uma criança que se destacara, mas que gostaria de se manter pelos cantos. Disfarçara suas dores com raiva e leveza, mas quem o conhecera sempre soube de sua sensibilidade. Deixava-me louca com suas traquinagens, embora muitas vezes me despertasse carinho. – Foi o meu melhor aluno.
O meu aluno de dez anos que muitas vezes soube ter mais idade do que eu. Herdara do pai o gosto por rock. Fã dos Beatles, não abrira mão do cabelo estilo Paul McCartney. Ganhara uma jaqueta de couro do tio caminhoneiro, desfilara pelos corredores da escola, segurando firme a jaqueta e sentindo-se no céu. Aconteceram momentos em que fiquei sentada observando Eduardo, e teci sonhos impossíveis, o vi voar. – Ele me lembrara personagens dos meus melhores filmes.
Tornou-se muitas vezes o meu próprio personagem. Disfarcei fatos, inventei palavras, produzi Eduardo para que ninguém soubesse. O guardei dentro das melhores fábulas, o perdi nos piores parágrafos, o encantei com alguns suspiros. Eu era professora, aluna, e sentia-me mãe. Aquele garoto era meu. Eu o amara de maneira bonita: – o educara, o protegera, escutara suas dores e fizera com que ele pudesse sorrir.
Era o menino Peter Pan que nunca crescera. Era a minha escuta, a minha alma, os meus sonhos. Olhara Eduardo e soubera muito do que fui, do que me tornaria, do que gostaria de ser.
Era tomada por uma dor todas as vezes que ele se afastara ou que ele me atingira, mas a dor maior corria o peito quando eu tinha de adverte-lo. Muitas vezes vi Eduardo olhar com fé o horizonte, – quem era eu para julgar aqueles sonhos?
Eu era a professora, que passara a ser aluna. A estranha deslumbrada. O “ninguém” da vida de Eduardo. Era a fome, a sede, a desilusão, o caminho, o sorriso, o incerto. Eu era quem falara sobre os problemas da vida, os erros do ser-humano, a dificuldade do verbo ser, as mentiras que as pessoas contam. Eu era a palavra doce que poderia se tornar amarga. O passado, o futuro, o presente. Eduardo era o meu presente.
Aqueles presentes que vem numa embalagem com um laço vermelho enorme e lindo. Era assim que eu me sentira todas as vezes que estava frente dele: – sendo presenteada. Sentia-me machucada todas as vezes que percebera que eu não poderia ser um presente à ele também. Mas eu entendera que, Eduardo era as minhas palavras. Enquanto ele, ele teria uma vida inteira pela frente... As palavras nos enriquecem, mas quem enriquece as palavras?
Eram dados sem volta. Dois números seis. Uma dúzia de músicas e estrofes. Dois personagens. Um amor que não era amor. Uma história linda. Algumas reticências e várias virgulas. – Eu sempre tive medo do ponto final.
Sabia que uma hora ele iria embora, mas temia as pessoas que iriam tirá-lo de mim. Fiz planos incabíveis de fazê-lo meu. Fugir, roubar, matar. Que fosse! Meu personagem principal não poderia ir embora. Se ele fosse, era como se eu perdesse os parágrafos, não houvesse mais travessões... Quem me mostraria o caminho? Onde eu procuraria os verbos? Que verbo? Verbo amar.
Tu o amas. Ele o ama. Nós o amamos. Vós o ama. Eles o amam. – Eu o amo. – Eu amo o personagem que pegara borboleta com um chapéu, que jogara Alice no buraco, que adoçara o café do monstro, que fugira de casa após uma briga, que riu da cara do presidente, que enlouqueceu a cozinheira com tanta música, que fritou o ovo com o avestruz dentro, que não teve limites, que morreu, que ressuscitou, que teve vários nomes, que dançou, que cresceu, que mudou. Eu amara Eduardo que mudou.
Amara o nome, os erros, os ditos, os pronomes, a voz, a digestão, as lágrimas, os sorrisos, a mágica, as mentiras. O amara por inteiro. Pois foi assim que ele me ensinou: O amor não é só o bom, não é só o que completa, não é só o que nós queremos. Deve-se amar o todo. Certo ou errado. Que seja amor!
Que seja vivo, que seja errado, que seja água, que seja exagero, que seja romântico, que seja explosivo, paldoso, calmo, bonito, orgulhoso, chato, bobo, incalculável, desregrado, descritível, comum, irracional. Que seja nosso.
Como amor de professor, de pai, ou mãe. Amor de quem protege. De quem vive. De quem quer bem. Amor de quem faz feliz, e principalmente, amor de quem é feliz. Porque eu sou feliz com Eduardo.
– Onde eu assino? – perguntou Alice.
– Na gaveta. – respondeu o chapeleiro.
– Gaveta?
– Aquela que abre o coração.
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