O carro de som anunciara a morte do velho Kall. Os motivos da morte não nos interessavam. Eu e Renato só queríamos saber de uma coisa... – O velório foi simples. Só haviam pessoas que moravam naquela mesma rua. O velho solitário não possuía família. Enquanto minha mãe rezava ao pé do caixão, eu observava o cadáver. Frio, branco, mas parecia dormir. Arrisquei tocá-lo para ver se estava mesmo morto. E estava. Mesmo assim, a idéia de que o velho levantaria do caixão não saíra de minha cabeça, e eu sorria. Gargalhara em frente ao caixão do velho Kally. Ficara imaginando como as rezadeiras da cidade reagiriam com o despertar de um defunto velho.
Assim que o enterro acabou, encontrei Renato na esquina do cemitério. Fomos direto à casa do velho colecionador de moedas. No caminho, planejávamos tudo o que faríamos com a nossa coleção. “Vou vender tudinho”, disse à Renato. E ficara sonhando com todas as bolas de futebol que eu compraria com a venda das moedas... Renato dizia que continuaria a coleção. Eu achava uma bobeira aquela história, mas a parte de Renato era dele mesmo. “Faça o que quiser”, – dizia à ele, “só não morra igual ao velho. Construa família.”.
Ao chegar à casa, tudo estava do mesmo jeito que o velho havia deixado. Silêncio, solidão e calmaria. Renato achara assustador, já eu gostara da idéia de não se ter com quem se preocupar. Descemos até o porão, e lá estava a nossa coleção de moedas. Brilhantes, lindas, incontestavelmente valiosas.
– Quanto será que há aqui?
– Muito, Renato. Muito. Muito!
Meus olhos brilhavam tanto quanto os de Renato. Eu era uma criança ambiciosa. É claro que, frente aquilo, toda criança ficara admirada. Mas eu não. Eu sentia algo mais que admiração. Eu sentira amor por tudo aquilo. Amor por cada moedinha que o velho juntou com tanto esforço. Amor por cada coisa que eu faria ao vender a minha parte.
– Sua parte? – perguntou Renato. – Isto aqui tudo é do velho. Não é nosso. Tá errado, Bino! Vamos embora... Isso vai criar problemas para nós.
– Negativo. Isso é nosso, sim! Ninguém sabia dessa coleção. E o velho não tinha família... Larga de ser medroso!
Apenas nós dois sabíamos daquela coleção. E sabíamos porque o velho nos fez buscar algumas moedas que ele havia comprado com o Relojoeiro da Rua XXI. Lembro-me de como fiquei quando vi, pela primeira vez, a coleção do velho Kall. Como fiquei, não. Lembro-me o que senti. Lembro-me o que pensei: “Isto tudo será meu”.
De repente, Renato chamara minha atenção quando abrira um baú com um mapa. “ – Bino, olha isto aqui!”. O que é?, pensei. E só depois de analisar bem foi que me deparei com um mapa que levara ao Carrossel dos Sonhos.
– O Carrossel que o velho falou! Lembra? – perguntou Renato.
É claro que eu lembrava. E é claro que meus olhos brilhavam tanto quanto brilharam ao ver as moedas. O Carrossel dos Sonhos era o brinquedo mais querido pelas crianças e adultos. Você entrava, dava uma volta, e tudo o que imaginara enquanto estava ali dentro com o Carrossel girando, se realizaria. Era um Carrossel único. Mágico.
– Não podemos levar as moedas conosco.
Então fomos sem elas. Sim. Nós fomos atrás do Carrossel.
O Carrossel estava na Cidade Que Ninguém Encontra. O caminho era longo, levamos bastante comida. Embora a comida tenha acabado antes da metade do caminho. [...] A estrada nos trouxe surpresas arriscadas, temidas e geniosas. O palhaço que soltara fogo da boca, o dragão que falara sobre a princesa que o deixara, o peixe que andara na terra, o extraterrestre que veio do Sol, o exame médico de Hitler, a cabeça raspada do Skinhead gay, a emocionada Julieta das sombras, o tolo Willian que escrevera seus romances, Darwin que soletrava números, cartas que jogavam pôquer de humanos, labirinto das três viúvas, e finalmente a princesa que era bruxa. Foi terrível soltar a madrasta da torre! – Contos de fadas eram mais legais quando o mundo não estava de cabeça para baixo.
Andamos a metade do mundo. E chegamos ao Carrossel.
Era lindo. Brilhara tanto quanto a Torre de Paris. Haviam homenzinhos que pareciam fadas voando sobre. Muita música, algodão doce, roda gigante ao fundo. E um senhor com um chapéu enorme cuidando da porta. O senhor tinha sorriso de Coringa e olhos de Chapeleiro, só que a cor dos olhos era azul-marinho. Branco, muito branco, com marcas pretas desenhadas no corpo. Paletó verde e não tinha cabelo. Calça amarela e pantufas de pena de avestruz. O Senhor Bizarro deu-me medo.
– O que fazem aqui?
– Queremos entrar.
– E vão sonhar com o quê?
Renato entrou. Eu fiquei parado.
Eu era só um menino, que não tinha sonhos. Talvez tivesse, mas nenhum plano. Houvessem estrelas no céu e estaria bom para mim. A única coisa que sempre quis eram as moedas, porque me despertavam amor. Era a maior riqueza de minha vida. E eu houvera as deixado. Deixar um amor é imperdoável, embora o mundo seja grande e cheio de coisas lindas. – O que eu pensara quando o fiz?
Renato me chamara: “Venha, venha!”. Eu não posso Renato, desculpe. Há um amor que fica aqui dentro. São moedas de ouro. São cobiças preciosas. São moedinhas pequenas que me despertam grandes sonhos. Eu não posso sonhar sem elas.
– Não vai entrar? – perguntou o Senhor Bizarro.
– Não. Eu preciso de amor para sonhar.
Um comentário:
É sério isso? Vc tem noção do potencial desse texto? É inacreditavelmente magnifico. Parabéns
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